segunda-feira, 24 de maio de 2010

Crônicas - Luis Fernando Verissimo



Os que ficam

Como diz o Gore Vidal, não basta ter sucesso: é preciso que os outros fracassem. Os que ficam em Porto Alegre no verão não se contentam com cinemas refrigerados no shopping, trânsito fácil e lugar no Pampulhinha, precisam saber que na praia está um inferno. Telefonam-se com notícias da orla, só para darem risada.

- Viu só? Choveu o dia inteiro. A água virou um Nescau.

- Faz 42 graus, na sombra. Isso prá quem encontrava uma sombra sem argentino. Diz que o óleo na areia tá incendiando sozinho.

- Ventou tanto que Atlântida invadiu Capão sem querer.

- Bicho de pé tá cobrando pedágio pra dar passagem.

- E os preços? Já tem consórcio pra comprar Kibon.

- Pancadaria em Imbé.

- Tiroteio em Tramandaí.

- Faltou mate em Cidreira.

- Siris atacam hotel.

- Qua-quara-qua-quá.

São cruéis, os que ficam.

Está certo, sou um farsante. Passei três dias em Torres e achei uma maravilha. Torres, claro, não é mais o que era no tempo em que só se chegava lá com dinheiro e determinação, para não falar num carro possante. Ajudava se você fosse alemão. Democratizou-se, e assim é que deve ser.

Praia é uma república em que todos são iguais perante o Sol. Nenhuma democracia social é tão adiantada quanto a praia, onde as raças não apenas convivem como fazem tudo para se tornarem iguais. Suam, literalmente, para diminuir suas diferenças. Os brancos tentam ficar marrons, embora às vezes só fiquem vermelhos, os marrons ficam pretos e os pretos já estão prontos. A praia também é a democracia econômica com que tantos sonham. É difícil distinguir o rico do pobre sem roupa. Muitas vezes a única diferença entre o biquíni de uma granfina e o biquíni de uma suburbana é a etiqueta, e você não pode ficar pedindo para ver a etiqueta da moça. Mesmo que, muitas vezes, o biquíni seja só a etiqueta.

A não ser no detalhe - uma barriga mais próspera, um par de óculos escuros obviamente mais caro - não há como ostentar riqueza na praia. Não existem guarda-sóis-mansões e guarda-sóis populares, ou sombra de luxo e sombra conjugada. E o mesmo isopor que traz o champanha traz a farofa. Na praia todo mundo é posseiro e ninguém é proprietário, e não há conflitos territoriais. A não ser os causados por boladas do frescobol, que são resolvidos no grito.

Na praia só há uma distinção de classes, e esta independe de dinheiro e posição social: a distinção entre os mais bonitos e os menos bonitos. Mas os privilegiados da praia são generosos com a sua beleza, geralmente os que mais possuem são os que mais esbanjam, e todos em volta têm acesso - pelo menos visual - ao seu patrimônio. A elite da praia são as mulheres bonitas. Elas têm aquela empáfia, aquela certeza de que merecem tudo que Deus lhes deu, que caracteriza todas as elites. Mas diferentes de outras aristocracias, não guardam seus tesouros longe dos menos favorecidos. Não os depositam em contas na Suíça nem deixam para desfrutá-los apenas em ambientes exclusivos, na presença de outros privilegiados. Quanto mais têm, mais mostram. As mulheres bonitas da praia são pioneiras nesta obra de grande alcance social que é a distribuição de encantos. Todos os avanços - que no caso são recuos - na moda de praia são motivados, acima de tudo, pela consciência de que sonegar beleza dos olhos dos outros é um egoísmo tão grave quanto seria sonegar a paisagem. As mulheres bonitas, cedendo partes cada vez maiores do seu corpo aos olhos de todos na praia, dão lições diárias de desprendimento democrático. Ainda atingirão a democracia plena, não usando nem uma etiqueta.
Gosto, sim, de praia. Talvez até fique numa uns quatro dias, algum dia.